Por muito tempo as pessoas que tinham algum tipo de sofrimento ou transtorno mental só poderiam buscar ajuda nos hospitais psiquiátricos, ambientes onde ficariam enclausuradas por longos períodos de tempo, afastadas dos familiares e da sociedade, com um tratamento feito única e, exclusivamente, à base de medicamentos.
Mas esse tipo de abordagem foi sendo modificado após a publicação daportaria nº 336 de 2002, do Ministério da Saúde (MS), com a implantação dos Centros de Atenção Psicossociais (Caps). Agora, com esses locais a disposição, os pacientes com transtornos mentais graves recebem um tratamento voltado para a reintrodução dessas pessoas na comunidade, feito por uma equipe multidisciplinar, formada por psiquiatras, terapeutas ocupacionais, enfermeiro, psicólogo, assistente social, pedagogo, técnico de enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão.
Os usuários de álcool e outras drogas também são acompanhados nos Caps, após a publicação da portaria nº 3.088 de 2011 , também do MS, com a instalação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Entre os tratamentos oferecidos nos Caps, estão os atendimentos psicoterapêuticos, medicamentoso, para cada paciente, os trabalhos em grupos para os usuários interagirem entre si, além das oficinas, que, em alguns Centros, possuem projetos de economia solidária, onde os objetos produzidos possam gerar renda para os pacientes, e assim eles possam buscar um lugar no mercado de trabalho.
Sonho possível
O que você faria se tivesse o emprego que mais desejou na vida e, em um dia qualquer, depois de 26 anos de trabalho, desmaiar, ficar em coma por uma semana e receber a notícia dos médicos de que não pode mais fazer o que tanto gostava?
Foi por essa situação que Sérgio Valença, 46 anos, passou em 2011, quando foi diagnosticado com estresse agudo, causado por cansaço físico e mental, pelas 18 horas diárias dirigindo um caminhão para uma usina, na região.
“Depois que os médicos me deram essa notícia, naquela hora para mim todas as portas tinham se fechado, e eu não sabia mais o que fazer da vida. Ser caminhoneiro era o meu sonho”, contou o ex-caminhoneiro, e agora dono de duas lojas em São Miguel dos Campos.
Após ser diagnosticado com o transtorno mental, Sérgio foi internado no Hospital Psiquiátrico José Lopes, em Maceió, onde ficou por seis meses. Até que os familiares o levaram, em 2012, para o Centro de Atenção Psicossocial José de Aquino, na cidade de São Miguel dos Campos. “Quando estava interno, pensava em muita besteira, mas quando comecei a frequentar o Caps, foi a minha salvação. Lá eu aprendi a fazer quadros de gesso, e coloquei para vender, com o apoio dos profissionais do Centro. Eu precisava de dinheiro, já que não tinha conseguido me aposentar por causa do meu problema de saúde”, disse.
Depois dos quadros de gesso, os usuários do Caps de São Miguel dos Campos começaram a fabricar e customizar sandálias. “Foi nesse momento em que descobri uma nova paixão: a confecção de sandálias. Eu sempre tive habilidade para o artesanato, mas nunca pensei que fosse trabalhar e tirar o meu sustento e da minha família, e tudo que tenho devo a esse trabalho”, disse Sérgio, que é pai de dois filhos e tem duas netas.
Após ter conseguido um dinheiro com a venda dos materiais produzidos no Caps, Sérgio abriu uma loja própria para comercializar a sua marca: Valença Calçados. “Eu já tive quatro lojas, onde vendia, junto com minha esposa Cícera, as sandálias tipo rasteirinha, que nós dois produzíamos em casa mesmo, costurando e colando. Hoje nós só temos dois estabelecimentos e agora nós terceirizamos a produção da nossa marca de sandálias”, contou o dono do Atacado de Variedades, que também vende roupas, bijuterias, bolsas, brinquedos e acessórios.
Sérgio vende em média 500 pares das sandálias Valença Calçados por mês para todo o Brasil e já chegou a vender para o Paraguai. Mesmo tendo conquistado tantas coisas, Sérgio continua com o tratamento medicamentoso e frequenta o Caps mensalmente para atendimentos de rotina.
O projeto de geração de renda do Caps de São Miguel dos Campos, relatado por Sérgio, é o “Mãos que Restauram Vidas”, que teve inicio em 2014, dois anos após a abertura do Caps. Quem está à frente das atividades da oficina é Genivaldo Silva, um dos 10 profissionais que compõe o quadro de funcionários do Centro.
“O Mãos que Restauram Vidas vai muito além de ser somente um complemento da terapia, aqui os usuários conseguem resgatar direitos, onde eles podem ser produtivos, aumentando a autoestima, e incentivando a produção e a venda dos produtos. Assim também existe a interação com a comunidade e a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho”, afirmou Genivaldo.
A aceitação por parte da comunidade ainda é uma barreira a ser superada pelos usuários dos Caps. O oficineiro afirmou ainda que no momento em que os produtos são aceitos e comercializados, os pacientes percebem a possibilidade de entrar no mercado de trabalho e, para isso, os Centros têm um papel importante ao estimular a capacidade de cada indivíduo.
Maria Kátia da Silva, 39 anos, outra das 100 usuárias do Caps de São Miguel dos Campos, possui a mesma vontade do Sérgio, de montar um negócio próprio no centro do município. “Eu sofro de depressão há sete anos e cheguei aqui em 2012. Antes não queria saber de nada, vivia chorando e dormindo, sem ânimo nem para sair de casa. Mas quando vim para o Caps, também aprendi a fazer as sandálias. Agora estou bem melhor e me divirto muito aqui. Aos poucos estou melhorando para que, no futuro, eu possa aprender a vender os meus produtos e consiga abrir uma loja de roupas”, afirmou a usuária. O dinheiro da venda das sandálias produzidas pelos usuários é destinado para o Caps para a compra de novos materiais, como borrachas, correias e os enfeites para a customização dos produtos.
Geração de renda no campo
Mas nem só de artesanato vivem os projetos ofertados pelos Centros de Atenção Psicossocial em Alagoas. Em Coruripe, no Caps Dr. Djalma Guttemberg Breda, os pacientes têm a disposição um espaço para plantar frutas, verduras, raízes e ervas medicinais.
“Nosso Caps existe desde 2002, com 20 profissionais para cuidar dos 120 usuários com casos de transtornos mentais ou dependência de álcool ou outras drogas. Aqui os pacientes podem optar pelo que mais interessa: o trabalho artesanal, confeccionando vassouras e bancos de garrafas pet, bandejas de jornais, produtos de tecido, ou produzir na horta onde podem plantar o que quiserem”, explicou Maria Alice Carvalho, coordenadora do Caps de Coruripe.
Há cerca de quatro anos, o senhor José Pereira da Silva, 62, chegou até o Caps Dr. Djalma Guttemberg Breda depois de ter passado 30 anos vítima no alcoolismo. “Quando eu cheguei aqui, estava sem nenhuma roupa, só queria saber de tomar cachaça, mas fui muito bem acolhido e considero que o Caps foi a minha salvação. A médica que me atendeu disse que se eu tivesse continuado a beber eu não estaria vivo”, diz José.
Sobre as atividades desenvolvidas no Caps, ele conta que até tentaram colocá-lo no artesanato, mas “ficar muito tempo sentado faz mal para a coluna, prefiro pegar no cabo da enxada e cuidar da plantação”.
A horta tão bem cuidada por José é recheada de diversos alimentos, sendo vendidos para a comunidade e também é utilizado para fazer a comida dos usuários. “Plantei milho, macaxeira, coentro, tomate, batata, mamão, abóbora, couve, cebolinha, inhame, cidreira, hortelã, e muitas outras coisas. Quando está no tempo de colher, nós montamos uma barraca na porta do Caps e a população toda vem comprar da gente”, contou.
Da mesma forma do Caps de São Miguel dos Campos, uma parte da venda dos produtos da horta fica com o Caps de Coruripe, para a compra de sementes e adubo. E a outra parte é repassada para os usuários que tomam conta da horta.
“Tenho mais dois colegas que me ajudam com a plantação, e o dinheiro que ganho aqui também ajuda a completar a renda da minha casa, já que vivemos com a aposentadoria da minha esposa”, contou.
Mesmo tendo recebido alta três vezes, José Pereira não pensa em deixar o Caps.
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Financiamento dos Caps
Cada Caps habilitado pelo Ministério da Saúde, dependendo da modalidade, recebe um valor do Governo Federal (ver infográfico). O município deve dar a contrapartida de pagar os salários dos funcionários e, para o governo estadual, fica a parte de capacitar esses profissionais.
Berto Gonçalo, supervisor de atenção psicossocial da Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas, explica qual o papel do Estado no incentivo à geração de renda nos Caps.
“O papel da Secretaria é promover capacitações tanto para os oficineiros, como para os usuários. Também temos feito intercâmbios, onde reunimos usuários de diferentes Caps para que haja uma troca de experiências entre as produções e cada paciente possa evoluir de forma diferente com o outro. Estamos elaborando um projeto para assessorar os serviços que estiverem mais organizados, para a formação de cooperativas”, adiantou o supervisor.
Alagoas possui 59 Centros de Atenção Psicossocial, sendo que 40 deles possui algum tipo de projeto voltado para a
geração de renda dos usuários.