á muito que a questão suscita interpretações diferentes, seja entre condóminos, entre deputados e até mesmo entre juízes: o alojamento local (AL) cabe no conceito de habitação ou deve ser considerado uma atividade comercial? A última resposta dos tribunais, determinada num acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), diz que o alojamento local não pode ser considerado habitação. No Parlamento estão duas iniciativas para clarificar a lei, mas de sentido diametralmente oposto – o Bloco de Esquerda quer fechar a porta ao AL em prédios habitacionais, a IL quer consagrar expressamente essa possibilidade. A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) junta-se agora à discussão, alinhando claramente com a posição dos liberais.
Em dois pareceres aos projetos de lei apresentados na Assembleia da República, a ANMP dá nota “desfavorável” à iniciativa do BE e, em sentido contrário, diz não se opor ao texto da IL. A organização representativa dos municípios argumenta que os alojamentos locais “têm servido ao longo dos últimos anos como complemento ou, muitas vezes, total sustento de muitas famílias, dando às cidades e vilas onde estão situados, maior capacidade de camas do que aquela disponibilizada pelas instalações hoteleiras”. A este argumento, contrário à proibição dos AL em frações habitacionais, os municípios somam um outro: “A necessidade de proteger os investidores que escolheram comprar casas em Portugal para enveredar no negócio do alojamento local e as múltiplas externalidades positivas que daí advém”. Em particular, o efeito que os AL “tiveram na renovação e reabilitação, nomeadamente de centros históricos, que estavam abandonados, sem condições de vida e fruição”.
STJ diz que AL não é habitação
Advogando soluções totalmente opostas, os dois projetos de lei, que aguardam agendamento, visam clarificar a situação dos AL que constituem frações de prédios habitacionais – a grande maioria dos casos nas grandes cidades. Após algumas decisões judiciais de sinal contrário, o caso ganhou novas dimensões em março último, quando um acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça veio estipular o entendimento de que não é permitida a atividade de AL em frações de prédios destinados a habitação. “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo de que certa fração se destina a habitação deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”, escreveu o STJ. Não tendo força de lei, a decisão serve de guia a futuros processos judiciais em que seja contestada – e pode sê-lo por um único condómino – a existência de unidades de AL em prédios de habitação.
Na sequência do acórdão do STJ, BE e IL avançaram então com propostas para clarificar a lei, com os bloquistas a seguirem o entendimento do STJ e os liberais a irem na direção contrária. A IL quer inscrever na lei que “a exploração de estabelecimentos de AL em fração autónoma de edifício constituído em propriedade horizontal destinado no título constitutivo a habitação não constitui uso diverso desse fim habitacional”.
Já o BE quer impedir que as frações destinadas a uso habitacional possam ser revertidas para uso de comércio (o que permitiria a manutenção das unidades de AL, mesmo à luz do acórdão do STJ). Com uma exceção: essa conversão só será permitida nos territórios classificados como de baixa densidade. Para o BE o “direito à habitação não se garante permitindo que milhares de casas que estavam destinadas à habitação possam agora ver o seu destino alterado para comércio”, pelo que se deve “reconhecer o erro e garantir que não há uma corrida às alterações dos títulos constitutivos dos imóveis”. Um “erro” que a bancada bloquista atribui ao Governo, mas também aos municípios: ambos “falharam”. Para o BE o “lucro rápido falou mais alto e milhares de pessoas foram expulsas do local onde viviam para que as suas casas se tornassem hotéis informais”.
O AL é uma das principais fontes da taxa turística cobrada pelos municípios. Em Lisboa, por exemplo, esta taxa rendeu aos cofres da autarquia 38,8 milhões de euros em 2019, valor que caiu para os 7,7 milhões no ano seguinte, devido à pandemia.
Mas a ANMP tem um entendimento diferente dos bloquistas. Dizendo “compreender” a motivação da necessidade de garantia de resposta habitacional, os municípios sustentam que as “soluções nesta matéria devem procurar, sempre, o equilíbrio entre a tutela do direito à propriedade e a necessidade de regular, no caso, o mercado da oferta habitacional”.
Porto pede mais poderes
Já a Câmara do Porto – que deixou recentemente de pertencer à ANMP – apresentou um contributo próprio ao Parlamento, sugerindo um leque alargado de alterações e clarificações à lei, nomeadamente quanto ao registo, requisitos exigíveis, prazos ou cancelamento de unidades de AL. O município liderado por Rui Moreira queixa-se de que as autarquias estão remetidas a um papel meramente administrativo e pede uma “competência regulamentar alargada”, dada a maior proximidade e conhecimento do território. No documento a autarquia conta que, aquando da criação do regulamento das zonas de contenção, a comunicação obrigatória ao Turismo de Portugal dos artigos matriciais das zonas interditas a novos registos – uma informação que o município, à data, não detinha – levou a que “mais de 500 novos AL”s tivessem obtido registo independentemente de se localizarem ou não nessas zonas”.
FONTE: Diário de Notícias